autora: Raquel S. Thiago.

Publicado em Referência – Joinville Ontem & Hoje – março de 2008 : Joinville – Câmara Municipal.

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Nada reflete melhor o cotidiano de uma cidade do que o seu Mercado Municipal. Ali se discute política, futebol e religião na mesa do boteco, no balcão da peixaria, da verdureira, na barbearia e na banca do jogo do bicho . Habita o Mercado um imaginário variado e colorido.

Em Joinville tornou-se, em um século, também, o lugar do lazer e da gastronomia, tudo misturado ao comércio, a principal artéria por onde corre a animação da venda, da compra, da troca, da novidade. O Mercado Municipal é a cidade abreviada.

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Em 1907, quando foi inaugurado, Joinville contava com cerca de vinte mil habitantes, e passava por uma fase efervescente de crescimento econômico e desenvolvimento. A modernidade insinuava-se exibida, ousada, se não radical, mas prometendo mudanças importantes.

Mas essas mudanças estariam comprometidas em seu sucesso se na esfera política não se promovessem, igualmente, alguns acertos. Após mais de uma década do término da Revolução Federalista que aprofundara a cisão política já dos primórdios da República, finalmente em 1905 consolidou-se a fusão partidária em torno do Partido Republicano. Desenhava-se, assim, o rumo que afinal, com raríssimas exceções, trilharia a política brasileira na Primeira República, com Partido Único, fortalecendo as oligarquias locais.

Em Joinville os benefícios dessa política chegariam aos comerciantes e industriais envolvidos com o beneficiamento e exportação da erva-mate e da madeira, cujo poder econômico estendeu-se para a esfera política. Foi a fase do poder luso-brasileiro, da sua influência, que acabou por refletir até na arquitetura da cidade daquele período, estampada nas fachadas de diversos prédios públicos (principalmente) construídos no início do século, em estilos muitas vezes indefinidos, mas de tendência portuguesa, puxando para o neoclássico.

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O Mercado Municipal insere-se nesse contexto, para formar com o Moinho Boa Vista (1913) e o Porto do Cachoeira, o trinômio que desenharia a cara daquele espaço urbano, cujo burburinho do comércio de peixes, frutos do mar e produtos agrícolas era acompanhado pelos barulhos das gentes de todos os cantos, comerciantes, donas de casa, agricultores, pescadores, os pinguços . Alguns desses últimos fazem parte do folclore urbano, cujas histórias tragicômicas aguardam um historiador para recuperá-las, não sem antes buscá-las nas memórias ainda existentes. Tempos adiante, o Mercado incorporaria o lazer, com o chorinho e o samba das quintas e sábados do século vinte e um.

A construção do Mercado não aconteceu sem que houvesse intensas discussões, como as que acontecem nas comunidades, quando o assunto é de interesse público. Já no final do século dezenove, o Superintendente Municipal, ou Prefeito, como se diz atualmente, Frederico Brustlein, (1887-1890), propusera que fosse construído num terreno de sua propriedade, no final da atual Rua Jerônimo Coelho. Na época era Rua Paris. Mas a comissão encarregada de estudar e projetar a construção não concordou, alegando que o terreno era um charco que inundava com facilidade, de acordo com as marés, um problema que ainda hoje, por vezes, se manifesta. E o assunto ficou por aí.

Em 1906 novamente entrava em pauta a construção do Mercado Municipal, e as discórdias quanto ao local continuavam. Dessa vez havia uma forte corrente da população favorável à construção no final da Rua 9 de Março. Não foram poucos os sinais de protesto, quando a Câmara Municipal, seguindo os interesses de outra corrente, certamente a dos luso-brasileiros, resolveu que o Mercado deveria ficar às margens do Rio Cachoeira, no mesmo local do aterro feito um ano antes, na gestão de Procópio Gomes, junto ao porto, onde de fato foi edificado.

Em um século a cidade passou por várias transformações, com continuidades e rupturas, que acabaram por modelar seu perfil multicultural. Após a abertura da Estrada Dona Francisca (1876) Joinville cresceu como um núcleo próspero que acabou por atrair brasileiros para as redondezas, além de fixar e fazer prosperar os que estavam na Colônia Dona Francisca desde a sua fundação. Diz Carlos Gomes de Oliveira que nessa época “(…) os caboclos continuariam a afluir em maior escala para o rumoroso centro em que se constituíra a Colônia (…)”. De fato, a Estrada Dona Francisca, facilitou o acesso de produtos do planalto ao porto de São Francisco do Sul, principalmente a erva-mate, beneficiada em Joinville e exportada para Argentina, Uruguai e Chile.

Não por acaso, foi em pleno ciclo da erva-mate que se inaugurou, além do Mercado Municipal, o Hospital de Caridade (1906), Energia Elétrica (1909), Estação Ferroviária (1910), Moinho Boa Vista (1913) , a sede do Clube Joinville ( 1913) , um sinal da importância econômica e social do grupo luso-brasileiro que se juntara aos descendentes dos imigrantes germânicos na tarefa do desenvolvimento da cidade .

Procópio Gomes de Oliveira, ervateiro e sócio diretor da poderosa Companhia Industrial, ao lado de Abdon Baptista, foi o mais importante protagonista dessa fase, como Prefeito de Joinville em duas ocasiões, de 1903 a 1906 e de 1911 a 1914. .Em sua gestão foi construído o Mercado. Há duas décadas, a construção de um mercado público vinha sendo objeto de discussões no Conselho Municipal que reconhecia a necessidade de um local onde se pudessem comercializar os produtos locais e das redondezas. É justo, portanto, que citemos, entre outros nomes importantes, o de Procópio, que deixou sua marca indelével de administrador público e empreendedor.

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O Mercado Municipal de Joinville em sua arquitetura original materializou, certamente, o ciclo econômico e político da erva-mate e do poder luso-brasileiro em Joinville. Falava da sua época. Todavia sofreu duas grandes intervenções que o descaracterizaram, roubando-lhe a memória do contexto em que foi construído.

A primeira grande intervenção deu-se entre 1956 e 1957, quando Joinville passava por novo ciclo de intenso desenvolvimento, em consonância com o que ocorria no país. O Brasil saíra da Segunda Guerra Mundial em condições efetivas de avançar no seu processo de industrialização por substituição de importações, principalmente nas cidades cujas indústrias estivessem aptas a se desenvolver. Joinville era uma delas. À medida que a produção industrial crescia, acelerava-se o processo de urbanização, com visíveis transformações no centro da cidade.

Quem, entre os mais idosos, não lembra ou pelo menos não ouviu falar do Prefeito João Colin, na sua faina pelo calçamento das principais avenidas, inclusive aquela que a exemplo de Procópio Gomes leva seu nome? Dir-se-ia que a escalada desenvolvimentista da “Era JK” que apenas estava começando, antecipara-se em Joinville. E o Mercado Municipal mais uma vez tornou-se símbolo de uma época, com sua cara transmutada para a do Brasil de Niemeyer, passando a exibir-se numa roupagem arquitetônica modernista dos anos cinquenta.

Imprimia-se, assim, a marca de Joinville do pós-guerra quando finalmente se recuperava e se consolidava a ideia da colonização como um empreendimento de enorme sucesso. Novas memórias estavam sendo construídas.

A partir dos anos setenta o país parecia redescobrir-se historicamente talvez pela perspectiva da abertura política que inundava de esperança corações e mentes dos brasileiros em direção à liberdade de imprensa, à liberdade de se (re­) escrever a história. O fato é que se criou um clima nacional em favor da memória histórica.

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Em Joinville, palestras e exposições tornaram-se frequentes lembrando a imigração germânica. A casa em enxaimel, simbolizando a saga do colono europeu, acabou por transformar-se em modismo romântico de classe média e tema privilegiado do discurso político. Foi assim que em 1982 o nosso Mercado ganhou nova feição, dessa vez a do colono rústico, mas ordeiro e caprichoso, como demonstram as floreiras que, sinal dos tempos, ostentavam mimosas flores artificiais, de acordo com a geleia geral da pós-modernidade.

Dos anos oitenta em diante, pois, temos um Mercado-Símbolo de uma cidade que, superado o trauma da nacionalização, já não precisa esconder suas origens germânicas. Mas se transforma por dentro, refletindo um novo tempo trazido pelo migrante de várias partes do Brasil.

O samba, o sertanejo, o chorinho, o jazz, tudo ali se mistura aos odores e sabores de uma gastronomia igualmente plural. Dir-se-ia que é uma memória construída aos pedaços, tudo junto e misturado.

Referências bibliográficas

  • GOMES DE OLIVEIRA, Carlos. Integração – estudos sociais e históricos – Joinville . Florianópolis: Gráfica Canarinho, 1984.
  • Florianópolis: Gráfica Canarinho, 1984.
  • S.THIAGO, Raquel . Coronelismo Urbano em Joinville – O Caso de Abdon Baptista. Florianópolis: Edição do Governo do Estado de Santa Catarina, 1988.
  • _________________. Joinville – Cultura e História . In: Joinville – 150 anos. Instituto Joinville : Editora Letra d’Água , 2001.
  • __________________ Patrimônio Histórico. Artigo : Jornal A Notícia, agosto de 1982.
  • Álbum Histórico do Centenário de Joinville . 1851 – 1951 . Sociedade Amigos de Joinville ( org.) Curitiba: Gráfica Mundial Limitada, 1951.